Prostitutas mulheres, que trabalham na avenida W3, explicam como situação de vulnerabilidade se intensificou durante crise sanitária
São 22h na Avenida W3 norte, Plano Piloto de Brasília. As lojas estão fechadas, o horário do rush passou. O movimento acelerado de oficinas, lanchonetes e todo tipo de comércio lentamente se dissipou até restar a distância e um silêncio aparente. Algumas pessoas ainda aguardam nas paradas de ônibus, mas o turno dos trabalhadores da noite começou há pelo menos duas horas. Nas ruas solitárias, mulheres cis e trans exibem seus corpos na expectativa que alguém lhes pague a companhia.
O que nunca foi escondido na noite da W3 fica evidente com a movimentação dos carros. Os poucos veículos que ainda circulam na rua desaceleram e entram na pista auxiliar. Perto das lojas, as mulheres se distribuem ao longo da avenida. Em uma das entradas estava uma mulher loira, sozinha, 1,90m de altura com o salto alto, short jeans curtíssimo e top laranja. Um carro encostou, dois minutos de conversa e foi embora. Ao me aproximar, Barbie Sedutora perguntou: “Vamos fazer um programa, meu bem?” .
O sonho de Barbie
Barbie Sedutora é o nome que Viviane* adotou para si. Ela é uma mulher trans de 23 anos e, desde 2016, se prostitui nas redondezas da W3 Norte. Quando soube que iríamos apenas conversar, ficou desconfiada. Não durou muito, pois poucos minutos depois falava sobre como eu tive sorte em encontrá-la. “Eu acho que você não foi mandado aqui à toa, eu não sou um ser humano comum. Sou sensitiva. Não te falei isso né? Sou médium”. O acesso ao espaço onde Barbie Sedutora atende os clientes é por uma portinha entre lojas, protegida com grade e cadeado. Logo no primeiro passo, há uma escada estreita, íngreme e molhada. Havia chovido no dia. O local é um ambiente em constante metamorfose. São quatro cômodos com apenas uma cama, separados por lençóis e divisórias improvisadas. Na área comum perto da entrada, um banheiro e alguns eletrodomésticos. O fluxo de pessoas é desordenado e conversas picadas se esbarram onde as divisórias não alcançam. O quarto em que Viviane me recebe é o menos apertado deles, com janela para rua e iluminação rosada. Apesar da iluminação precária do ambiente, os traços de Viviane estavam mais nítidos. Olhos escuros, sobrancelha grossa, sorriso impecável, maxilares definidos, pele negra, tatuagens de borboleta e muita segurança em si. “Não é que eu seja a mais bonita. Apesar de eu ser bonita, lógico. Mas eu tenho um algo a mais. Pode ser minha educação também, eu tenho um tchan pra conquistar as pessoas”, vangloria-se. Segura em seu espaço de trabalho, Viviane acendeu o cigarro e ligou o ventilador. Antes que qualquer pergunta fosse lida do caderno de apoio, a entrevistada se antecipou: “Essa vida das mulheres é bem difícil. As pessoas acham que é um dinheiro fácil, mas não é um dinheiro fácil, é um dinheiro rápido. Mas aí tu vai pelo dinheiro.” A partir dessa frase, as perguntas se multiplicaram. “Eu tenho um tchan pra conquistar as pessoas”, diz Viviane, que trabalha na W3 Viviane nasceu em Esteio, o menor município do Rio Grande do Sul, a 24 km da capital gaúcha. Os pais se conheceram em Brasília, onde a mãe residia. Depois do casamento, eles se estabeleceram em Esteio, próximo à família do pai, que trabalha com plantação de uva. Durante a infância, alguns meninos tiravam sarro da personalidade de Viviane, mas ela afirma que jamais teve problemas com os parentes mais próximos, nem mulheres nem homens. “A minha questão sexual nunca foi um problema pra minha família. Eu sempre fui muito afeminada desde criança.” Quando estava com 12 anos, os pais se separaram e Viviane chegou a Brasília acompanhando a mãe. Morou com ela até os 17 anos, quando se mudou para casa de um namorado. A mudança de lar não foi uma escolha movida apenas por amor. “Eu já tava cansada da minha vida na casa da minha mãe, porque eu já tinha 17 anos e minha mãe me cobrava que eu já tivesse emprego, que eu tivesse uma estabilidade e tudo”. Saiu brigada da casa da mãe. Mesmo com as pazes feitas, não considera voltar a conviver com ela. “Eu não posso falar que vou voltar para casa da minha mãe. Eu e minha mãe a gente dá certo assim. Ela na casa dela e eu na minha.” O namoro durou alguns meses e, após o término, Viviane se encontrou desamparada. Com 17 anos e sem um teto, precisava de dinheiro rápido. Para ela, a faculdade e o mercado de trabalho não estavam prontos para uma adolescente trans. “Eu não me vejo fazendo faculdade. Até por ser trans, eu não acho o mercado de trabalho tão aberto para nós. É lógico que se eu estudar e tudo eu vou ter uma oportunidade, mas desmotiva a gente saber que ainda tem todo esse preconceito em volta dessa questão de ser trans ou cis”. A realidade das meninas transexuais que Viviane conhecia lhe levaram a crer que a única opção para se sustentar seria por meio da prostituição. “Acaba que a gente é marginalizada, porque tipo, se tu é trans ou alguma coisa do tipo, você não vai ter um trabalho, não vai conseguir emprego e a sociedade acaba te jogando aonde? Na rua, ali, pra fazer sexo em troca de dinheiro.”
Colaboração : JBR